Robert Walter: narrativas do sagrado
O grupo de pesquisadores ligados ao NAMI (Grupo de Pesquisa em Narrativas Midiáticas, NAMI-Uniso-CNPq) |
Por Vanessa Heidemann
Terça feira, 24 de
outubro de 2017. Não está tão quente como seria em um dia típico de primavera
na Cidade Universitária Prof. Aldo Vannucchi, em Sorocaba, São Paulo. Acontece
o encontro do Grupo de Pesquisa em Narrativas Midiáticas (NAMI). O palestrante
convidado é estadunidense, seu nome é Robert Walter, presidente da Joseph
Campbell Foundation.
Joseph
Campbell (1904-1987) foi um estudioso estadunidense de mitologia e é considerado
um dos maiores nomes da área do século XX. Autor de vários livros, seus estudos
influenciaram várias áreas, inclusive o cinema.
Nessa
tarde de primavera, esse senhor alto e robusto adentra no auditório da
biblioteca da Uniso. Seu traje é totalmente preto, com exceção das seis listras
brancas que cortam de cima a baixo sua camisa de manga curta (três de cada lado
do peito) e das faixas brancas em seu tênis. Sua roupa contrasta com os cabelos
e cavanhaque que já foram negros ou talvez castanhos escuros um dia. Há um
brinco dourado em uma das orelhas, um relógio dourado com pulseira preta no
braço direito e uma pulseira de contas igualmente negras que remetem ao estilo
zen budista. Seus olhos negros são tão marcantes que quase não se percebe os
óculos simples, de armação metálica.
Quem
acompanha o palestrante como anfitriã é a Prof. Dra. Monica Martinez, líder do Grupo
de Pesquisa de Narrativas Midiáticas (NAMI Uniso/CNPq) e do Núcleo Granja Viana
da Fundação Joseph Campbell.
Assim
como o convidado, Monica veste preto. A indumentária destaca o colar
avermelhado, alguns tons mais claros que o cabelo, este de um vermelho intenso.
Lado a lado, sobre a plataforma que se ergue alguns centímetros do chão da sala,
a dupla parece se complementar.
Na fala
de abertura, Monica compartilha com os presentes que Robert Walter começou a
trabalhar com Joseph Campbell em 1978, sendo, portanto quase 40 anos dedicados
a Fundação que o próprio Robert ajudou a fundar. Lembra que foi na década de 1990,
por meio do canal TV Cultura, que os vídeos da serie de entrevistas que Campbell
concedeu ao jornalista Bill Moyers intitulado “O Poder do Mito” foram
divulgados pela primeira vez no Brasil. Lembra que, na época a profundidade e
ao mesmo tempo a simplicidade da estrutura das narrativas míticas –
também
conhecidas como jornada do herói ou monomito – causaram furor.
Aponta
que, desde então, os estudos das estruturas de narrativas míticas migram para a
área da comunicação por meio de nomes como o Prof. Dr. Edvaldo Pereira Lima, um dos pioneiros na Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Paulo em unir aos estudos do jornalismo as
narrativas míticas, a psicologia e a mitologia.
Robert Walter, presidente da Fundação Joseph Campbell (EUA) |
Ao receber
o microfone, Walter pede a Monica que traduza aos presentes algumas palavras. Diz
que está vivendo uma nova experiência naquele dia e que gostaria de falar em
português, mas que não será possível. Conta que viajando e palestrando pelo
mundo, já passou por inúmeras experiências para resolver as diferenças
linguísticas como tradução simultânea, por exemplo. Porém essa é a primeira vez
que seu texto será apresentado em outra língua concomitantemente a sua fala em
inglês. Agradece a anfitriã por ela ter traduzido o texto possibilitando,
portanto, essa nova experiência.
Walter começa a palestra dizendo que cada pessoa que conhecemos tem
histórias para contar e que são elas que guiam e moldam o nosso comportamento.
Essas histórias que nos moldam são os mitos.
Para explicar sua compreensão do que é mito, compartilha a história da
filha de uma amiga que aos cinco anos de idade, ao passar por uma entrevista
para ingressar no jardim de infância é questionada por um psicólogo se seus
pais lêem para ela. Ela, então, responde que seu pai lhe conta histórias e sua
mãe lhe conta mitos gregos. Surpreendido, o entrevistador pergunta se ela sabe
o que é mito e ela responde: “Um mito é uma história que não é verdade do lado
de fora. Mas é verdade por dentro”.
A partir dessa definição, o convidado afirma que um mito é uma história
verdadeira e ao mesmo tempo não o é, uma história simples com um significado
profundo. Aponta que muitas vezes mito e mitologia são usados da mesma forma,
porém define mitologia como um sonho público, uma coleção de histórias que nos
ensinam e auxiliam a guiar a nossa vida.
Usando a definição dada por Joseph
Campbell, explica que os mitos são como os sonhos para um indivíduo, só que num
nível coletivo: revelações dos desejos mais profundos de um dado grupo social.
E que essas narrativas devem ser sempre compreendidas como metáforas. Segundo
Campbell, os mitos possuíam quatro funções: a mística, a cosmológica, a
sociológica e a pedagógica ou psicológica.
Nesse momento, ao contar uma piada feita
entre os membros da Fundação em relação às quatro funções, pela primeira vez Walter
se refere a Joseph Campbell pelo apelido “Joe”. A partir de então, o apelido
surgirá muitas vezes no decorrer de sua fala.
Sobre os mitos na atualidade, o senhor que
traja preto aponta para os problemas que enfrentamos por vivermos em uma aldeia
global fragmentada que não nos fornece mitologias viáveis. Morainas é o termo
que Campbell utiliza para explicar esse fenômeno, ou seja, massas de rochas e
sedimentos que são carregados e posteriormente depositados por uma geleira.
Esse processo, segundo Walter, origina duas vertentes: a dos fundamentalistas,
que compreendem as mitologias não como metáforas, mas sim como narrativas literais;
e a de pessoas que compreendem as mitologias como uma espécie de mágica.
O mito não nos fariam sentido na atualidade,
conforme a fala do palestrante, pois as histórias de nossos antepassados não
nos conectam mais a realidade. A explicação cientifica do universo de forma
fragmentada nos leva a perder as quatro funções mitológicas, e enquanto tribo
global os mitos se fragmentam, tornando-se disfuncionais.
Após a leitura do poema The People of the Other Village (O povo da outra aldeia) do poeta Thomas Lux (1946-2017), uma
breve pausa é sugerida pelo palestrante. Depois de 14 minutos de intervalo e de
alguns comes e bebes, é reiniciada a fala do convidado.
Para que haja mitos viáveis, citando
Campbell, Walter afirma que precisamos revisar os mitos que herdamos. Rever um
texto antigo com um novo olhar, pois é necessário desmitificar a vida antes de mitificá-la
novamente. Possuir as próprias experiências e compreender as mudanças transforma
a perspectiva de vida de cada um, levando à possibilidade do processo de
individuação, onde cada indivíduo é responsável por si e, por extensão, pela
comunidade à qual está inserido.
Segundo o convidado, não há exemplos de um
herói externo a ser seguido. Cada um deve ser seu próprio herói e seu próprio
salvador. É necessário, portanto, procurar “seu povo”, “seus pares”, pois todos estão inseridos em um
mesmo sistema planetário.
A palestra é desenvolvida como uma colcha
de retalhos e a linha que une todas as partes é o pensamento de Campbell. A
fala de Walter é metafórica e, portanto faz rir, chorar, suspirar e refletir.
Encerrada
sua fala, Walter convida os presentes a lhe fazer perguntas. Algumas questões
surgem e são prontamente respondidas pelo simpático convidado, entre elas a
feita pela anfitriã Monica ganha destaque pela reação de Walter. Ela pergunta
se ele pode compartilhar como foi a experiência de ter conhecido Joseph
Campbell.
Seguem-se alguns segundos de silêncio. Então
Walter faz uma menção de sim com a cabeça. Olha fixamente alguns segundos para
baixo, e conta que conheceu o mitólogo por trabalhar com publicações de livros.
E que apesar de Campbell ser famoso na atualidade, no final dos anos 1970 ele
não o era. Na verdade, ele levava uma vida bastante modesta em seu apartamento
de dois quartos em Nova York, compartilhado com a esposa Jean Eardman. Campbell
só se torna conhecido em nível mundial após seu falecimento graças ao destaque
que ganha ao ser consultor de filmes como Guerra nas Estrelas, de George Lucas,
e devido ao documentário O Poder do Mito.
Nesse momento, enquanto compartilha algumas histórias, é perceptível sua
admiração pelo mitólogo: sua fala é carregada de pequenas pausas, breves
suspiros e olhares para baixo. Termina dizendo que a dedicação de Campbell ao
trabalho foi grande fonte de inspiração para sua vida. Enquanto sua fala era
traduzida para a plateia, Walter se debruça sobre a mesa de discurso apoiando a
cabeça com uma das mãos e seu olhar parece distante.
Encerrado o encontro,
alguns membros da plateia abordam o senhor simpático, que de forma solicita
atende a todos. Hora está falando com um indivíduo, hora está imerso em uma
roda, entretanto há certa pressa em partir. É Monica que o levará de carona de
volta à São Paulo, onde ele tem uma agenda cheia de compromissos durante sua
estada no país.
Distraída aguardando
um colega, percebo o senhor de cabelos acinzentados se aproximando. Ele havia
deixado sua blusa em cima de uma mesa próxima a mim. Para minha surpresa, ele
não se dirige a mesa, mas sim, caminha diretamente na minha direção. Ele olha
diretamente em meus olhos, me obrigando a apontar o queixo para cima, dada a
considerável diferença de altura entre nós.
Robert Walter possui
um ar de cavaleiro/sacerdote, olhar hipnotizante e humildade tocante. Viaja
mundo afora carregando seu estandarte invisível, que não possui bordado o
símbolo de reinos, clãs ou partidos políticos, mas sim o símbolo de algo que
lhe é sagrado. Ele abre um leve sorriso e diz: “Eu gostei de ver seu sorriso
durante a palestra”, no que eu ainda surpresa e meio sem jeito, respondo que
achei a fala maravilhosa. Peço desculpas
por não falar inglês muito bem e ele responde: “Não tem problema”. Complemento
dizendo que eu sorri muito durante sua apresentação, mas que também chorei. Ele,
então, abre um grande sorriso e dá de ombros como quem diz: “Fazer o quê, né?”.
Seu olhar é tão penetrante que não me recordo o que foi dito depois, apenas que
digo que o verei no dia seguinte numa próxima palestra, esta no Núcleo Granja
Viana da Fundação Joseph Campbell, na Granja Viana, São Paulo. Ao que ele
responde: “OK” levantando uma das mãos para esboçar um tchau, já caminhando em
direção à saída.
Ao vê-lo partir, é
quase possível visualizar seu estandarte invisível sendo carregado com esmero, com
os símbolos bordados imaginários formados pela junção de três letras em um dourado
reluzente que para ele é sagrado: “Joe”. Foi, sem dúvida, uma grande forma de encerrar o primeiro ano (de dois, em 2018 tem mais!) do ciclo de estudos sobre comunicação e afetos.
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